O livro de Jó registra a história de uma interessante aposta. Satanás, o inimigo de nossas almas, tem a audácia de desafiar Deus. “Já perdeu!”, talvez você diga apressado, achando que o Coisa-ruim ia ser besta de apostar alguma coisa que dependesse do Senhor. Mas o que está em jogo é uma das coisas mais enganosas de que se tem notícia: o coração do homem (Jeremias 17.9). "Será que Jó não tem razões para temer a Deus?", questiona Satanás, “acaso não puseste uma cerca em volta dele, da família dele e de tudo o que ele possui? Tu mesmo tens abençoado tudo o que ele faz (...) estende a tua mão e fere tudo o que ele tem, e com certeza ele te amaldiçoará na tua face”. (Jó 1.9-11).
Comentando sobre o assunto em seu livro O Caminho do Coração, o pastor e escritor Ricardo Barbosa esclarece que “o que Satanás desconfia é da motivação, dos interesses ocultos. Ele quer ver se é possível para o homem buscar a Deus e adorá-lo sem nenhuma expectativa de recompensa” (p.27).
A acusação satânica é mais do que apenas uma constatação da natureza humana. O inimigo de nossas almas tem a audácia de culpar a Deus pela falha no “projeto-humanidade”: “Sua criação ama, muito acima de ti, as tuas bênçãos!”, subentendemos.
Olhando para o “evangelho” que se propaga pelas rádios e TV’s de nosso país, onde o discurso vigente é exatamente de que “Deus tem uma bênção pra você, por isso não deixe de vir à igreja X, mande sua oferta para a obra Y e participe da campanha Z”, fico imaginando o quanto essas pessoas, sem perceber, estão contribuindo para que Satanás vença a aposta.
Gosto de pensar que essa aposta hoje depende de mim. Minha oração, a cada dia, é que eu jamais dê espaço à tentação de me relacionar com Deus motivado por aquilo que Ele tem a me oferecer. Saber que só o Senhor é Deus deve ser razão suficiente para que meu coração possa temê-lo, adorá-lo e louvá-lo.
A data da minha ordenação pastoral coincidiu com a chegada da primavera no hemisfério sul. Como se sabe, a primavera é a estação do ano marcada pelo equinócio de setembro, ocasião em que o dia e a noite têm a mesma duração. A partir de então, os dias, gradualmente, vão se tornando mais longos que a noite, até a chegada do verão. Não é de admirar que a chegada dessa estação, desde há muito, esteja ligada à renovação das esperanças! E esperança é sentimento que não chega atrasado em ordenação pastoral.
Naturalmente, o novel pastor é alvo dos mais sinceros desejos de que tudo se vá bem na caminhada que ora se inicia. Por isso mesmo, durante esses dias, tenho recebido as manifestações carinhosas dos parentes e amigos. A sinceridade e a generosidade que acompanham cada gesto têm me emocionado bastante, o que me faz exultar da mais pura e verdadeira alegria. Dessa esperança boa, confesso, não quero jamais saciar-me.
Entretanto, contrariando toda essa boa dádiva, há um tipo de projeção que paira o ar dos ambientes religiosos e que é fruto de uma histórica distorção dos princípios bíblicos. Falo daquela impressão que se tem de que o pastor se transforma, como que num passe de mágica, num ser acima do bem e do mal que goza de plenos poderes espirituais e que, por isso mesmo, está imune às dificuldades inerentes aos reles mortais que compõem o resto da humanidade. Exagero meu? Talvez. Mas pra muitos é assim mesmo que funciona. Botou um paletó, virou homem de aço.
Só quero lembrar que até o Superman tem seu dia de kryptonita. E que nenhum pastor é Super.
Eu poderia usar este espaço para listar tudo que eu espero ser como pastor, ou mesmo tudo que eu NÃO espero. Mas isso se transformaria num texto longo e entediante... e convenhamos, o tédio não combina comigo. Por isso, quero apenas registrar um desafio. Posso até mudar de opinião lá pra frente, mas nesse momento eu penso que será o maior dos desafios que enfrentarei no ministério: conciliar a função pastoral e a minha humanidade.
Eu sei, não vai ser fácil. Mas o que posso fazer, por hora, é aproveitar a coincidência da chegada da primavera para praticar aqueles que podem ser os mandamentos mais negligenciados do Cristo (pelo menos em nossa geração): “Olhai para as aves do céu... Olhai para os lírios do campo...” (Mt 6.26,28). O que me conforta é saber que posso desfrutar da companhia do Deus que se revela nas coisas simples. Se das aves e flores Ele tem cuidado tão bem, em suas mãos entrego a minha caminhada.
E vou assim, de primavera a primavera, “caminhando e cantando e seguindo a canção; aprendendo e ensinando uma nova lição”.
Em Cristo, que em sua infinita sabedoria se fez humano, Vitor Sousa.
Ali no comecinho do Sermão do Monte, Jesus revelou aos seus discípulos algo muito importante sobre a maneira como deveriam atuar no mundo. Usando as simbologias que lhe eram características, Jesus lhes disse: “Vocês são o sal da terra. Mas se o sal perder o seu sabor, como restaurá-lo? Não servirá para nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos homens” (Mateus 5.13).
Quando olho para a realidade do Evangelho em nossos dias, fico pensando o quão distante nós estamos do cenário proposto por Jesus. Não que ache que nossos irmãos “perderam o sabor e já não sirvam para nada”. O problema é que parece que nós exageramos na dose. Aliás, “exageramos” é apelido! Eu acho é que os crentes pensaram que Jesus disse: “Vocês são o sal da terra. A partir de agora, saiam por aí e troquem toda a comida que há no mundo por sal! Sal, sal, sal... muito sal!”
De repente, o almoço que deveria alimentar a muitos, ficou salgado demais, pro meu gosto! A boa notícia é que a gente ainda tem a chance de começar novamente.
O que Jesus queria dizer pra gente era bem simples: as coisas no mundo estão meio sem sabor, meio sem graça... vocês, então, vão se misturando aí. Sabe quando vamos saber que está bom? Quando ninguém perceber que estamos por aí, mas ainda assim comentarem: “eu não sei o que é, mas esse negócio tá gostoso”! É que, na culinária de Jesus, o sal não ganha elogio. O que ganha elogio é a comida.
“Como a corça anseia por águas correntes, a minha alma anseia por ti, ó Deus”. (Salmos 42.1)
O poeta bíblico conseguiu transformar nesta bela imagem aquilo que nós inegavelmente percebemos: todo ser humano é movido por “uma força” que o impulsiona a uma relação com Deus. Eu compreendo que a origem dessa “força” pode ser explicada pelos primeiros capítulos do livro bíblico de Gênesis, onde se lê que Deus, ao criar o ser humano, compartilhou com ele a sua “imagem e semelhança”. É esse “pedaço de Deus em nós” que nos impulsiona a uma relação com o Divino. Lembrar de uma pedra-imã pode nos ajudar a entender essa relação. Quando passamos um pedaço maior de pedra-imã próximo a outros menores, estes são imediatamente atraídos.
Detalhe da pintura "A Criação de Adão", de Michelangelo (Capela Cistina)
Ao longo da sua história, a humanidade foi criando alvos aos quais direcionava essa grande força que o impulsionava a algo maior. Trabalho, riqueza, família, amigos, a natureza, ou mesmo a autossatisfação, tentavam preencher o espaço que Deus deixou em cada um de nós. Mas no fim das contas, continuávamos a ser atraídos. Acredito que assim, a gente possa explicar a grande diversidade de “divindades” que a humanidade já criou, mas nenhuma delas jamais foi capaz de corresponder a essa atração que nos move.
Por isso mesmo, Deus, em sua infinita misericórdia, revelou-nos qual deve ser o alvo e direção de nossas vidas. O apóstolo Paulo escreveu que Deus nos “revelou o mistério da sua vontade, de acordo com o seu bom propósito que ele estabeleceu em Cristo, isto é, de fazer convergir em Cristo todas as coisas, celestiais ou terrenas, na dispensação da plenitude dos tempos” (Efésios 1.9-10). Bendito seja Deus, que não apenas nos deu uma “inexplicável” sede, mas também nos indicou a inesgotável fonte de Água Viva, Jesus Cristo.
“...edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16.18)
Ligar a TV ou abrir o jornal em busca de notícias tem se constituído numa tarefa verdadeiramente excruciante, nos últimos dias. Em meio à onda de violência que, dia-a-dia, nos encobre e sufoca, uma pergunta sempre emerge em minhas reflexões: onde está a igreja?
Meu questionamento, claro, não diz respeito à presença física da Igreja em meio à sociedade. Os 35 milhões de evangélicos brasileiros estão espalhados nos milhares de templos, em cada esquina das grandes e pequenas cidades.
Talvez, por isso mesmo, no turbilhão de imagens tão fortes propagadas pelos meios de comunicação, curiosamente, foram imagens de uma obra de ficção as maiores responsáveis pela intensificação desse meu questionamento. De certo, choquei-me por demais ao ver, numa obra filmográfica que retrata a realidade com verossimilhança, um grupo de policiais corruptos executando um trabalhador na esquina duma Igreja. Uma Igreja que, diga-se, estava de portas fechadas.
Sim, as igrejas estão presentes até mesmo nas mais violentas comunidades. Mas de que vale uma Igreja de portas fechadas? Novamente, as portas fechadas, para mim, não dizem respeito apenas ao ato físico. De quantas formas uma Igreja pode fechar suas portas? Inclino-me a pensar que a mais perigosa delas seja quando, como representantes de Deus na terra, deixamos de dar atenção às necessidades urgentes e emergentes daqueles que nos cercam. “Em verdade vos digo que, sempre que o deixastes de fazer a um destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer”, nos garantiu Jesus (Mt 25.45).
Pode não parecer, mas eu acredito na Igreja. Não a igreja (com “i” minúsculo mesmo) auto-enclausurada em si mesma e preocupada apenas com as mais ínfimas questões, que dizem mais respeito à manutenção de sua institucionalização do que ao Reino de Deus. Eu acredito na Igreja que, de posse do Evangelho, não se sente acuada ante as investidas do maligno, pois sabe que “maior é aquele que está em (nós) do que aquele que está no mundo” (1Jo 4.4). Eu acredito na Igreja que, munida da certeza de que Cristo “virá como um Rei separar para sempre o mau do bom”, envida todos os seus esforços em denunciar as injustiças que a cercam.
Poderia me estender numa lista (quase) sem fim dos motivos que me levam a acreditar na Igreja. Mas um deles me parece adequado para finalizar este texto. Eu acredito na Igreja que, mesmo sabendo que não pertence ao mundo (Jo 17.16), ama-o, à semelhança do seu Deus, a ponto de entregar o melhor de si em favor dele (Jo 3.16). A Igreja na qual acredito, nunca fecha suas portas. Nenhuma delas.
A frase é uma tradução livre do título de um dos episódios de LOST, seriado de TV que, entre um mistério e outro, se dedicava a analisar os relacionamentos humanos, especialmente os familiares.
Às vezes, fico me perguntando por que agimos com tanta estranheza quando nos deparamos com os problemas familiares estampados em obras de ficção. Seja no cinema ou na literatura, no teatro ou na TV, nós protestamos contra todos os “absurdos” a que somos expostos – “Como é que pode? Isso é um desrespeito à família!”. Mas, pense aí, qual é a família que não enfrenta problemas semelhantes aos vividos pelos personagens que adoramos criticar? E nem adianta tentar comparar entre problemas maiores e menores, porque esse é o tipo de coisa para a qual ainda não se criou uma régua exata – afinal, se por um lado eu consigo lidar bem com determinada situação, a mesmíssima coisa pode ser tremendo embaraço para outros.
Se é assim com famílias fictícias, imagine como fica a coisa quando aquele “absurdo” vem parar dentro de casa? “A maioria das famílias são desajustadas”, constata o escritor Paul Stevens, com certa moderação, em seu livro A Espiritualidade na Prática. Eu penso que TODAS as famílias têm problemas. Fato. Mas creio que pelo menos um deles (também tenho meu lado moderado) é comum a todas: imaginar que as outras famílias não têm defeitos.
Não, eu não estou falando que, de agora em diante, vamos nos conformar com os problemas e aceitar todo tipo de desrespeito porque é assim mesmo e acabou. Não. O que me preocupa é essa mania que temos de achar que nunca teremos um “lar feliz” por conta desses inumeráveis percalços.
Parece que nos impomos um padrão tão inalcançável de “família feliz” que nem percebemos quanto mal ele nos proporciona. A Bíblia está cheia de exemplos de famílias “problemáticas” que encontraram suas maneiras de vivenciar a felicidade em seus relacionamentos. Sobre isso, Paul Stevens diz que “Deus trabalha [nas famílias], mesmo nas mais desestruturadas, como a de Jacó”. Nosso desafio é perceber esse agir divino em nossa caminhada.
Se é verdade que o caminho da felicidade é calçado de pedras, é inevitável que tropecemos lá e cá, ou mesmo sujemos a roupa acolá. Roupa suja, afinal, se lava em casa. Mas vale a pena lembrar que toda casa tem um varal.
Gosto do refrão de uma balada americana dos anos 90 que fazia exatamente a pergunta acima. A cantora ainda prosseguia questionando: “E se ele fosse apenas um estranho, como um de nós, num ônibus tentando voltar pra casa?”. Longe de ser apenas uma bela melodia, esta música me faz lembrar o compromisso que tenho como cristão no mundo.
A palavra “cristão” surgiu, há mais de 2000 anos, numa cidade chamada Antioquia. Originalmente, era um apelido pejorativo para aquelas pessoas que abraçaram a “nova religião” que se alastrava pelo antigo mundo. Aqueles homens e mulheres se comportavam tão parecidamente como seu mestre, que levou os habitantes daquela cidade a tratá-los como “pequenos Cristos”, isto é, cristãos.
O Apóstolo Paulo levou tão a sério esta verdade que declarou, na carta que escreveu aos Gálatas: “...já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no filho de Deus...” (Gálatas 2.20).
Quando pensamos como Paulo Cristo vive em mim , não nos perguntamos mais “E se Deus fosse um de nós?” porque entendemos que em qualquer lugar em que estivermos, mesmo num ônibus lotado tentando voltar pra casa, podemos nos comportar como “pequenos Cristos” entre os que nos cercam. E Ele, que foi “Deus conosco” em seu nascimento, será “Deus em nós”. Pense nisso.